Geração Distribuída no Brasil: Evolução, Legislação e Desafios

Jus Energy Consultoria em Energia

4/11/202510 min read

Geração Distribuída no Brasil: Evolução, Legislação e Desafios

Introdução

A Geração Distribuída (GD) tem revolucionado o setor elétrico brasileiro, convertendo consumidores em prossumidores – agentes que simultaneamente produzem e consomem energia. Este modelo descentralizado oferece uma miríade de benefícios, que vão desde a minimização de perdas em transmissão e distribuição até o estímulo ao uso de fontes renováveis e a criação de postos de trabalho. Contudo, a trajetória da GD no Brasil é pontuada por desafios e complexidades que demandam uma análise aprofundada.

Evolução da Geração Distribuída no Brasil

A evolução da GD no Brasil pode ser segmentada em fases distintas, cada qual com suas peculiaridades e marcos regulatórios:

Fase G1: O Marco Inicial (até 2012)

  • Resolução Normativa (REN) 482/2012 da ANEEL: Inaugurou a possibilidade de conexão de micro e minigeradores à rede elétrica, instituindo o sistema de compensação de energia.

  • Ênfase primária na energia solar fotovoltaica, devido à sua facilidade de implementação e escalabilidade. Por exemplo, residências e pequenos comércios começaram a instalar painéis solares nos telhados, injetando o excedente de energia na rede e recebendo créditos na conta de luz.

Fase G2: Expansão e Refinamento (2015-2022)

  • REN 687/2015: Aperfeiçoou as regras de compensação, viabilizando o compartilhamento de créditos de energia entre diferentes unidades consumidoras (autoconsumo remoto e geração compartilhada). Um exemplo prático é um grupo de empresas que investe em uma usina solar em uma área rural e divide os créditos de energia entre suas unidades urbanas.

  • Crescimento exponencial da GD, impulsionado pela redução dos custos da tecnologia solar e pelo aumento das tarifas de energia. O programa "Minha Casa Melhor", por exemplo, facilitou o acesso a financiamentos para sistemas solares residenciais, impulsionando ainda mais a adoção da GD.

Fase G3: Transição e Novos Paradigmas (2022 em diante)

  • Lei nº 14.300/2022 (Marco Legal da GD): Introduziu o conceito de "Fio B" (tarifa de uso do sistema de distribuição) para GD com potência acima de 5 MW e novas regras de compensação para instalações existentes e futuras. Essa lei buscou equilibrar os custos e benefícios da GD para todos os participantes do setor elétrico.

  • Debate acalorado sobre a sustentabilidade econômica da GD e a imperatividade de harmonizar os interesses de todos os stakeholders (prossumidores, distribuidoras, consumidores cativos). Um exemplo é a discussão sobre como a cobrança do "Fio B" pode afetar a viabilidade de novos projetos de GD e o impacto nas tarifas dos consumidores que não geram sua própria energia.

Legislação Aplicável

A GD no Brasil é norteada por um arcabouço legal complexo e em constante atualização. As principais normas incluem:

  • Lei nº 14.300/2022: Marco Legal da GD, estabelecendo diretrizes para a cobrança do "Fio B" e a transição para o novo modelo de compensação. Essa lei detalha os critérios para a aplicação do "Fio B", os prazos para a transição e os direitos e deveres dos prossumidores.

  • Resoluções Normativas da ANEEL: Definem os procedimentos para conexão, medição e compensação de energia, além de requisitos técnicos e de segurança. As resoluções da ANEEL especificam os documentos necessários para a conexão de um sistema de GD à rede, os padrões de qualidade da energia injetada e os critérios para a medição e a compensação da energia.

  • Resolução Normativa nº 1.000/2021: Consolida diversos normativos da ANEEL, incluindo regras para a GD e a qualidade do serviço de distribuição. Essa resolução visa simplificar e unificar as normas da ANEEL, facilitando o entendimento e a aplicação das regras para a GD.

  • Resoluções da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE): Tratam de aspectos relacionados à contabilização e à comercialização da energia injetada na rede. As resoluções da CCEE definem os procedimentos para o registro dos sistemas de GD, a contabilização da energia injetada na rede e a liquidação financeira das operações.

  • Normas Técnicas da ABNT: Estabelecem padrões de segurança e desempenho para equipamentos e instalações de GD. As normas da ABNT garantem a segurança e a qualidade dos equipamentos e instalações de GD, abrangendo desde os painéis solares até os inversores e os sistemas de proteção.

Modalidades de Geração Distribuída

A legislação brasileira contempla diversas modalidades de GD, cada qual com suas características e regras específicas:

  • Microgeração: Potência instalada de até 75 kW. Ideal para residências, pequenos comércios e propriedades rurais de pequeno porte.

  • Minigeração: Potência instalada acima de 75 kW e menor ou igual a 5 MW. Adequada para indústrias, grandes comércios, condomínios e propriedades rurais de médio e grande porte.

  • Geração Compartilhada: Unidades consumidoras que se unem por meio de consórcio ou cooperativa para gerar energia em um local diferente do consumo. Essa modalidade permite que um grupo de pessoas ou empresas compartilhe os benefícios da GD, mesmo que não tenham espaço ou recursos para instalar um sistema individualmente.

  • Autoconsumo Remoto: Geração em um local para compensar o consumo em outro(s) local(is) pertencente(s) ao mesmo titular. Um exemplo é uma empresa que possui uma usina solar em sua sede e utiliza os créditos de energia para abater o consumo de suas filiais em outras cidades.

  • Empreendimentos com Múltiplas Unidades Consumidoras (EMUC): Geração em condomínios ou edifícios para atender às áreas comuns e/ou unidades privativas. Essa modalidade permite que os moradores de um condomínio gerem sua própria energia e reduzam os custos com a conta de luz.

  • Geração Próxima ao Consumo: Modalidade que visa incentivar a instalação de GD em locais próximos aos centros de consumo, reduzindo perdas na rede. Essa modalidade é especialmente importante em áreas urbanas com alta densidade de consumo e infraestrutura de rede limitada.

Fontes de Energia Utilizadas na Geração Distribuída

A GD no Brasil abrange uma variedade de fontes de energia, com destaque para:

  • Solar Fotovoltaica: Principal fonte de GD devido à sua abundância, custos decrescentes e facilidade de instalação. A energia solar fotovoltaica é uma fonte limpa, renovável e silenciosa, que pode ser utilizada em praticamente qualquer lugar do país.

  • Biomassa: Utilização de resíduos agrícolas, florestais ou urbanos para geração de energia térmica ou elétrica. A biomassa é uma fonte de energia renovável que pode ajudar a reduzir a dependência de combustíveis fósseis e a valorizar os resíduos orgânicos.

  • Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs): Usinas com potência instalada de até 30 MW. As PCHs são uma fonte de energia renovável que pode ser utilizada para gerar eletricidade de forma descentralizada, sem grandes impactos ambientais.

  • Geração Eólica: Aproveitamento da energia dos ventos para geração de eletricidade. A energia eólica é uma fonte limpa e renovável que pode ser utilizada em regiões com ventos fortes e constantes.

  • Geração a Gás Natural: Utilização de gás natural em unidades de cogeração ou trigeração. A cogeração e a trigeração são tecnologias que permitem a produção simultânea de eletricidade, calor e frio, aumentando a eficiência energética e reduzindo as emissões de gases de efeito estufa.

Problemas e Desafios Enfrentados por Projetos de Geração Distribuída

Apesar do crescimento expressivo, a GD no Brasil enfrenta diversos desafios que podem impactar a viabilidade e a sustentabilidade dos projetos:

  • Complexidade Regulatória: A legislação da GD é extensa e complexa, exigindo um conhecimento aprofundado para garantir a conformidade e evitar riscos. Por exemplo, um investidor pode ter dificuldades para entender as regras de compensação de energia e os requisitos para a conexão do sistema à rede.

  • Custos de Conexão: Os custos de conexão à rede elétrica podem ser elevados, especialmente para projetos de minigeração, impactando o retorno do investimento. As distribuidoras podem cobrar taxas elevadas para a realização de estudos de viabilidade, a instalação de equipamentos de medição e a adequação da rede.

  • Disponibilidade de Rede: A capacidade da rede elétrica para receber a energia gerada de forma distribuída pode ser limitada em algumas regiões, exigindo investimentos em infraestrutura. Em algumas áreas, a rede elétrica pode não ter capacidade para receber a energia gerada pelos sistemas de GD, o que pode exigir investimentos em novas linhas de transmissão e subestações.

  • Tributação: A incidência de impostos sobre a energia gerada e consumida pode reduzir a atratividade dos projetos de GD. Por exemplo, o ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) pode incidir sobre a energia injetada na rede, reduzindo os créditos de energia e o retorno do investimento.

  • Financiamento: A obtenção de financiamento para projetos de GD pode ser um desafio, especialmente para pequenos investidores. Os bancos podem exigir garantias elevadas e taxas de juros altas, dificultando o acesso ao crédito para os projetos de GD.

  • Qualidade da Energia: A variação na geração de energia em fontes intermitentes (solar e eólica) pode afetar a qualidade da energia fornecida à rede. A variação na geração de energia pode causar flutuações de tensão e frequência na rede, o que pode prejudicar o funcionamento de equipamentos sensíveis.

  • Questões Ambientais: A instalação de usinas de GD pode gerar impactos ambientais, como desmatamento, erosão e poluição sonora. É importante realizar estudos de impacto ambiental e adotar medidas de mitigação para minimizar os impactos ambientais dos projetos de GD.

  • Segurança: A conexão de equipamentos de GD à rede elétrica exige cuidados especiais para garantir a segurança dos trabalhadores e da população. É fundamental seguir as normas técnicas e utilizar equipamentos de proteção adequados para evitar acidentes.

  • Atrasos na Aprovação de Projetos: O processo de aprovação de projetos de GD pelas distribuidoras pode ser demorado e burocrático, atrasando a implantação dos projetos. A falta de pessoal qualificado e a complexidade dos processos podem causar atrasos na aprovação dos projetos.

  • Impacto nas Tarifas de Energia: O crescimento da GD pode impactar as tarifas de energia para os consumidores cativos, que podem ter que arcar com os custos da infraestrutura da rede. É importante encontrar um equilíbrio entre os benefícios da GD e os custos para os consumidores cativos.

Exemplos de Problemas Enfrentados na Prática

  • Demora na Conexão: Um investidor instala um sistema fotovoltaico em sua empresa, mas enfrenta dificuldades para obter a aprovação da distribuidora e conectar o sistema à rede. Isso gera atrasos no início da geração de energia e prejuízos financeiros, além de custos adicionais com a manutenção do sistema parado.

  • Cobrança Indevida: Um consumidor instala um sistema de GD em sua residência, mas recebe cobranças indevidas na fatura de energia devido a erros na medição ou na compensação da energia. Essa situação gera frustração e desconfiança no sistema de GD, além de exigir tempo e esforço para resolver o problema.

  • Problemas de Qualidade: Uma indústria instala uma usina de biomassa para gerar energia, mas enfrenta problemas de qualidade da energia devido a variações na queima da biomassa. Isso pode afetar a produção da indústria e exigir investimentos em equipamentos para estabilizar a energia.

  • Falta de Informação: Um agricultor decide investir em um sistema de GD, mas não tem acesso a informações claras e precisas sobre os custos, os benefícios e os riscos do projeto. A falta de informação pode levar a decisões equivocadas e prejuízos financeiros.

  • Dificuldade de Financiamento: Uma cooperativa de produtores rurais tenta obter financiamento para instalar um sistema de GD, mas enfrenta dificuldades devido à falta de garantias e à burocracia dos bancos. A falta de financiamento pode impedir a realização de projetos importantes para o desenvolvimento da comunidade rural.

Soluções e Recomendações

Para superar os desafios e impulsionar o crescimento sustentável da GD no Brasil, é fundamental:

  • Simplificar a Regulamentação: Reduzir a complexidade das normas e agilizar os processos de aprovação e conexão, criando um portal único para o registro e acompanhamento dos projetos.

  • Reduzir os Custos de Conexão: Adotar políticas que incentivem a conexão de projetos de GD à rede elétrica, como a criação de um fundo para financiar os investimentos em infraestrutura.

  • Investir na Infraestrutura da Rede: Ampliar e modernizar a rede elétrica para receber a energia gerada de forma distribuída, utilizando tecnologias inteligentes para gerenciar a energia de forma eficiente.

  • Racionalizar a Tributação: Eliminar ou reduzir a incidência de impostos sobre a energia gerada e consumida, criando um sistema tributário mais justo e eficiente para a GD.

  • Facilitar o Financiamento: Criar linhas de crédito e programas de apoio financeiro para projetos de GD, com taxas de juros competitivas e prazos adequados.

  • Promover a Qualidade da Energia: Estabelecer padrões de qualidade para a energia gerada de forma distribuída e incentivar o uso de tecnologias que garantam a estabilidade da rede, como sistemas de armazenamento de energia.

  • Mitigar os Impactos Ambientais: Exigir estudos de impacto ambiental para projetos de GD e incentivar o uso de tecnologias limpas e sustentáveis, como a energia solar e a biomassa.

  • Garantir a Segurança: Estabelecer normas de segurança para a instalação e a operação de equipamentos de GD, com a realização de inspeções periódicas e a capacitação dos profissionais.

  • Informar e Educar: Promover a conscientização sobre os benefícios da GD e capacitar os profissionais do setor, oferecendo cursos e treinamentos sobre as tecnologias e os regulamentos da GD.

  • Monitorar e Avaliar: Acompanhar o desenvolvimento da GD e avaliar os impactos da legislação e das políticas públicas, utilizando indicadores de desempenho e pesquisas de satisfação.

  • Flexibilização e Adaptação: Flexibilizar a legislação e as políticas públicas para se adaptarem às mudanças tecnológicas e às novas demandas do mercado, como a evolução das baterias de armazenamento e a crescente digitalização do setor elétrico.

  • Incentivo à Inovação: Incentivar a inovação e o desenvolvimento de novas tecnologias para a GD, como a criação de um programa de incentivo fiscal para empresas que investem em pesquisa e desenvolvimento.

  • Participação da Sociedade: Promover a participação da sociedade no debate sobre a GD e garantir a transparência das decisões, realizando audiências públicas e consultas online.

  • Planejamento de Longo Prazo: Elaborar um planejamento de longo prazo para a GD, definindo metas e estratégias para o desenvolvimento do setor, com a participação de todos os stakeholders.

Conclusão

A Geração Distribuída representa uma oportunidade única para transformar o setor elétrico brasileiro, tornando-o mais eficiente, sustentável e democrático. No entanto, para que a GD possa atingir todo o seu potencial, é fundamental superar os desafios existentes e criar um ambiente regulatório e econômico favorável. Com um planejamento estratégico, um marco legal claro e um compromisso com a inovação e a sustentabilidade, o Brasil pode se tornar um líder mundial em Geração Distribuída. A chave para o sucesso reside na colaboração entre o governo, as empresas, os consumidores e a sociedade em geral.

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